São Paulo começou a cultura dos bailes de periferia no final dos anos 1950. Como essas festas não tinham condições de contratar as grandes bandas que faziam sucesso na época, nasceu a figura do DJ – o marco é 1958, quando seu Osvaldo, o primeiro DJ do Brasil, começou a sua trajetória. Tocando num palco com as cortinas fechadas e sob o nome de Orquestra Invisível, o veterano DJ colocava a pista para dançar de uma forma mais econômica, que cabia no bolso dos organizadores.
Corta para os anos 1970. O Rio de Janeiro entrava na onda do Movimento Black Rio, em que centenas de equipes de som movimentavam milhões de cariocas ao som da soul music e do funk, que vinham dos Estados Unidos e pouco depois já geravam frutos por aqui – a Banda Black Rio, homônima ao movimento, é só um exemplo. E, nesse momento, entrava um fator importante para entendermos o novo álbum do Mano Brown, Boogie Naipe: a raça.
Naquele primeiro momento de São Paulo, as questões eram econômicas e periféricas. Já no Rio, entrou o fator do empoderamento do negro, do orgulho da raça e da cor. James Brown, Marvin Gaye, War e centenas de outros artistas cantavam sobre a beleza de ser negro. Malcolm X, Martin Luther King Jr. e Muhammad Ali falavam sobre a importância de ser negro. Os Panteras Negras se organizaram e protestavam nas ruas em razão da causa. E o som nos bailes era dançante e quente. Ou seja: ali se criou, verdadeiramente, o baile black – que, em seguida, foi “exportado” também para São Paulo e outros grandes centros do Brasil.
Mano Brown, nascido em 1970, cresceu nesse cenário. Quando o movimento hip hop se formou em São Paulo, nos anos 1980, ele já tinha idade para ver o que estava acontecendo e juntava credenciais para entrar no movimento. Se o rap, pesado e politizado, foi o caminho para que ele e seus amigos de grupo se expressassem, todo esse caldo cultural e esse contexto ficou em segundo plano. Agora, ele ganha as ruas.
Boogie Naipe é um manifesto disco-funk bastante coeso, que arrepia quem viveu a época dos bailes ou faz imaginar quem não nasceu a tempo de curtir essas noitadas. A memória afetiva é ativada em diversos momentos, até em uma vinheta que tem a locutora Vitória Rios – ela apresentou durante muitos anos um programa chamado Disco Classics, na rádio paulistana Alpha FM, campeã de audiência entre os fãs da música que também serviu de base para o hip hop.
O elenco é grande. Hyldon participa de “Foi Num Baile Black”, Carlos Dafé está em “Nova Jerusalém” e Leon Ware (que coproduziu I Want You, de Marvin Gaye) aparece em “Felizes/Heart 2 Heart”; Max de Castro, Ellen Oléria e Don Pixote também estão no disco, além de Wilson Simoninha, que faz as vezes de MC na vinheta de abertura. William Magalhães, filho de Oberdan Magalhães e herdeiro da Banda Black Rio, está em três faixas – entre elas a já conhecida “Mulher Elétrica”. Seu Jorge aparece na ótima dobradinha “Louis Lane” e “Dance, Dance, Dance” – que não deve nada para trabalhos elogiados no exterior, como The Weeknd ou Daft Punk. O nível de composição e produção é equivalente.
Mano Brown não é cantor, mas modula bem a voz nos tons graves em algumas faixas como “Mal De Amor”. Lino Krizz, parceiro de longa data dos Racionais MC’s, é que domina as partes mais melódicas (e agudas) do disco.
Apesar de usarmos o termo “álbum solo”, Boogie Naipe nasceu como um coletivo, que une a velha e a jovem guarda da música preta brasileira. Mano Brown não deixou de ser rapper ou assumiu uma postura de cantor romântico, como disseram alguns críticos antes mesmo de ouvir o disco. As ruas continuam representadas, só que de um jeito diferente: mais melodia, menos beats; mais banda, menos DJ. Tanto o ritmo quanto a poesia, as bases do rap, estão em Boogie Naipe.