O jornal do Rio de Janeiro Extra lançou na terça-feira, 15 de agosto, uma nova editoria que despertou polêmica: GUERRA. A iniciativa, diz o diário fluminense, busca um espaço onde publicar “tudo aquilo que foge ao padrão da normalidade civilizatória, e que só vemos no Rio”. “Um feto baleado na barriga da mãe não é só um caso de polícia. É sintoma de que algo muito grave ocorre na sociedade. A utilização de fuzis num assalto a uma farmácia não pode ser registrada como uma ocorrência banal”, disse o jornal do grupo Globo em seu editorial. “A morte de uma criança dentro da escola ou a execução de um policial são notícias que não cabem mais nas páginas que tratam de crimes do dia a dia”.
Esta não é a primeira vez que se fala de "guerra no Rio", fora das rodas de vizinhos. Costuma ser a frase que identifica o tema em cima das manchetes sobre violência, incursões policiais e mortes por balas perdidas ou mesmo a ideia que inspira títulos e narrativas, também neste jornal. Mas a decisão do Extra, além do debate jornalístico, reacendeu uma discussão maior sobre o uso adequado e a banalização da palavra guerra, não só na imprensa, mas também nas instituições como a Polícia Militar e o próprio Estado. Para os críticos de seu uso, ao invés de contribuir para chamar a atenção aos horrores da violência no Rio, ela pode justificar, ainda mais, abusos e crimes nas já submetidas favelas do Rio de Janeiro.
Há vários elementos que tornam o Rio um lugar excepcional, que remetem, efetivamente, a cenários de guerra. Devido à escalada da criminalidade, o Estado pediu socorro ao Governo Federal e cerca de 8.500 homens das Forças Armadas foram destacados no Rio. Após uns primeiros dias de exibição de tanques nas ruas nobres da cidade, os militares participaram de duas grandes operações em comunidades pobres com resultados questionados –na primeira, com mais de 5.000 homens, foram apreendidas três pistolas; na segunda, nesta quarta, com 3.000 homens, nenhuma. “As forças de segurança não estavam atrás de arsenais” e sim de bandidos, justificou o ministro da Defesa, Raul Jungmann, que defende que as tropas ainda estão “na curva de aprendizado”.
Quando os militares chegaram à cidade, no final de julho, Jungmann já advertiu: “Se você quer retirar, reduzir a capacidade do crime organizado ao ponto que ele chegou, nós vamos estar diante de uma espécie de guerra”. É, precisamente, no contexto do Rio que o Exército reforçou sua investida para mudar a legislação e evitar que militares que matem intencionalmente civis em operações nas quais exercem funções de polícia –como as do Rio– sejam julgados por um tribunal militar, e não civil como acontece desde 1996.
O controle de território por milícias, grupos de extermínio e traficantes com fuzis é outra das características do Rio, onde há, segundo o jornal Extra, 843 áreas dominadas por bandos armados. O Rio também chora o assassinato, só neste ano, de 97 policiais militares (mais de um terço das mortes do total do país), enquanto os índices de letalidade disparam: em 2016, mais de 17 pessoas morreram por dia vítimas da violência (a conta inclui homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e homicídio proveniente de oposição a intervenção policial). As escolas em áreas de conflito fecham habitualmente para poupar as crianças do fogo cruzado e nos hospitais e centros de saúde os médicos viraram especialistas em atenção a baleados, muitos por fuzil. A sensação é de descontrole e barbárie, mas isso significa guerra?
A adoção da palavra guerra está oficialmente fora do discurso institucional, embora a Polícia Militar do Rio venha reforçando seus posicionamentos públicos com termos bélicos. “[Os PMs do 41º BPM] vivem uma realidade de guerra, em que bandidos têm armas de guerra. Vivemos uma guerra assimétrica. Nesse caso só eles podem responder sobre o que aconteceu. Cabe a esses policiais ter uma chave seletora na mente deles para que sejam ora garantidor dos direitos da sociedade, ora um guerreiro. Que ser humano consegue fazer isso?”, dizia em maio o porta-voz da PM, Major Blaz, após a execução de dois traficantes rendidos por dois policiais. Nessa mesma entrevista, Blaz qualificou a morte de uma estudante de 13 anos dentro de uma escola, nesse mesmo dia, de “dano colateral”.
Embora a PM, na sua conta do Twitter, tenha aplaudido a iniciativa do jornal de pôr nome ao que não pode ser considerado normal, dentro da corporação alertam sobre o receio de oficializar o termo. “Nenhuma autoridade vai admitir. Parece que é admitir o próprio fracasso”, afirma um nome do alto comando da PM do Rio. A mesma fonte, no entanto, continua: “Eu acho que os números de mortos e feridos são de guerra, as armas são de guerra, as condutas dos criminosos são de uma guerrilha urbana. A gente pode chamar de outra coisa, mas qual seria o termo?”.
O fracasso da política de segurança é, precisamente, o termo mais repetido por quem alerta sobre o equívoco de dizer que o Rio está em guerra. “É fácil recorrer à imagem da guerra sem muita reflexão, porque nos últimos anos fomos nos deixando contaminar pela retórica bélica”, lamenta Atila Roque, ex-diretor da Anistia Internacional e atual diretor da Fundação Ford. “Mas a discussão aqui não é meramente conceitual. Ela remete a décadas de falência de uma política pública na área de segurança que foi incapaz, ao logo de toda a transição democrática, e particularmente no Rio, de garantir a segurança dos seus cidadãos", diz Roque. "O debate sobre se é guerra ou não é guerra acaba funcionando como uma espécie de cortina de fumaça do fracasso de políticas públicas ancoradas no confronto e que cobram um preço altíssimo da polícia e dos moradores”.
Familiarizado com a barbárie da guerra civil na Síria, Paulo Sergio Pinheiro, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, lamenta a naturalização do termo e, ainda mais, “a ocupação militar do Rio”. “O crime organizado não pode ser enfrentado como se fosse uma guerra. Repito a mesma coisa desde 1984”, reclama. Pinheiro, que é presidente da Comissão Independente de Inquérito da ONU sobre a Síria, defende que “o uso de armas não basta para qualificar como guerra o confronto com grupos criminosos” e chama a atenção sobre o que a guerra comporta. “O problema da ocupação militar do Rio é que por não ser um conflito armado não internacional –como uma guerra civil que implica a existência de grupos rebeldes, separatistas ou étnicos contra o Estado– as ações dos soldados (mortes, tortura...) atuando em comunidades urbanas, não podem ser controladas pelo direito humanitário e são fundamentalmente crimes comuns praticados por militares que ficarão impunes. Até a guerra é uma coisa que pode ser feita em contextos legais, o que não vemos que aconteça aqui”.
O debate continua nas redes, enquanto os moradores da comunidade de Jacarezinho, na zona norte do Rio, sofrem com o sétimo dia sob tiroteios entre policiais e traficantes após o assassinato de um policial civil na região. Entre as discussões virtuais, a favor e contra, tem surgido uma outra questão: o que acontece no Rio não tem nome.