Morte de jornalista que largou quimio levanta debate sobre terapia alternativa
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Publicado em 18/09/2017

Diagnosticado no início de maio com um câncer de pâncreas em estado avançado – com a metástase atingindo o fígado –, o jornalista e apresentador de TV Marcelo Rezende, de 65 anos, logo iniciou o procedimento recomendado para esse caso: o agressivo tratamento com medicamentos quimioterápicos. Em 13 de junho, porém, Rezende anunciou que abandonara a quimioterapia após a primeira sessão, contrariando seus médicos, para tentar um tratamento alternativo com base em uma dieta.

O caso ganhou repercussão nacional e levantou o debate sobre os riscos de trocar a quimioterapia por tratamentos sem base em evidências científicas, como dietas, exercícios, suplementos, vitaminas, massagens, ervas, acupuntura e meditação. O jornalista morreu no sábado e seu corpo foi enterrado neste domingo, 17, no Cemitério Congonhas.

Embora afirmem que as terapias alternativas possam mesmo ajudar o paciente a enfrentar os severos efeitos colaterais da quimioterapia, os estudos e os especialistas consultados pelo Estado são unânimes: esses métodos podem ser usados de modo complementar, mas não têm eficácia comprovada contra o câncer e são incapazes de substituir o tratamento convencional.

No caso de Rezende, a terapia alternativa escolhida foi a chamada dieta cetogênica, que se baseia em evitar açúcar e carboidratos. Desde que deixara a quimioterapia, o apresentador passou a realizar viagens para receber o tratamento alternativo em Juiz de Fora (MG), onde atua o cardiologista, nutrólogo e autor de livros de autoajuda Lair Ribeiro, um dos principais defensores da dieta cetogênica.

O conceito por trás da dieta cetogênica é bastante simples: as células cancerosas precisam de glicose para crescer e, ao evitar o consumo de carboidratos e açúcares, o paciente cortaria a alimentação do tumor, fazendo-o regredir por inanição.

O oncologista clínico André Sasse, coordenador do Centro de Evidências em Oncologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é taxativo: esse tratamento simplesmente não funciona. “A dieta cetogência é totalmente anticientífica, assim como as dietas para ‘alcalinizar’ o organismo. Não faz sentido do ponto de vista biológico. O tumor vai continuar crescendo”, disse Sasse.

A opinião é compartilhada pelo também oncologista clínico Felipe Ades, do Hospital Israelita Albert Einstein. Ele lembra que a ideia da dieta cetogênica foi proposta pela primeira vez pelo americano Raymond Rife, em 1931. “Ele foi genial ao seu tempo, mas lhe faltava conhecimento, como da estrutura do DNA, só descoberta em 1953. Mais tarde foi provado que alterações celulares – e não a glicose – causam o câncer. Se o paciente para de comer açúcares, o corpo vai produzir glicose do mesmo jeito”, explica.

“O câncer, na maior parte das vezes, é consequência do que respiramos, do que comemos e do que sofremos. Em determinado momento, as células doentes acumulam mutações e se tornam tumores. Mas esse é um processo que leva anos. Portanto, é fantasioso imaginar que, depois de se expor a um ou mais fatores de risco ao longo de décadas, o paciente consiga reverter isso mudando seus hábitos e seguindo uma dieta cetogênica, por exemplo”, explica o oncologista Helano Freitas, coordenador de Pesquisa Clínica do A. C. Camargo Cancer Center.

 

De volta ao passado

Sasse afirma que o tratamento convencional tem evoluído com os avanços científicos e tecnológicos e que vários tipos de câncer já são curáveis com quimioterapia, mesmo em estado avançado. “Abandonar um tratamento testado e aprovado e substituí-lo por terapias alternativas é o mesmo que retroceder 20 anos, quando não tínhamos tratamentos tão eficazes”, diz.

Freitas explica que no caso do câncer de pâncreas, quando se descobre a metástase, é muito raro que o paciente sobreviva mais de um ano sem tratamento. Ele cita um estudo britânico de 2006: “Com quimioterapia ou radioterapia, 58% dos pacientes estavam vivos após um ano. Sem eles, não havia sobreviventes depois de um ano. O risco de morte ao longo do primeiro ano foi 66% maior entre os pacientes que não faziam o tratamento recomendado”, disse.

O médico do AC Camargo explica que os clínicos precisam fazer uma avaliação cuidadosa do prognóstico do paciente para decidir se vale à pena fazer um tratamento mais agressivo, ou se faz mais sentido investir em cuidados paliativos para garantir alguma qualidade de vida.

“Diante de um contexto tão terrível como um diagnóstico de câncer no pâncreas com metástase – no qual sabemos que a chance de morte em questão de meses é muito alta –, temos diante de nós uma equação de qualidade de vida. Não há dúvida que a quimioterapia tem impactos bastante graves. A equação tem de levar em conta um equilíbrio entre esses impactos e a situação individual do paciente”, declarou.

Outras estratégias são só complemento

Os especialistas defendem que dietas e terapias alternativas, não fundamentadas em evidências científicas, podem ser boas como tratamento complementar.

“Mas devem se limitar a isso, jamais se pode abrir mão dos tratamentos com resultados comprovados. Os hábitos saudáveis e as atividades físicas devem ser estimulados, mas não substituem tratamentos”, diz Sasse.

Há uma ressalva. Quando os médicos sabem que o paciente não poderá ser curado, eles podem interromper a quimioterapia – especialmente em casos avançados nos quais a pessoa não sobreviveria o suficiente para se beneficiar do tratamento.

“Mas caso exista alguma chance, é preciso fazer a quimioterapia, mesmo com os impactos na qualidade de vida. Se não for feita, o câncer vai crescer e aí sim a pessoa perderá mais qualidade de vida, com dor, fadiga, enfraquecimento”, explica Ades.

Os dois citam um artigo publicado em agosto na prestigiada revista científica Journal of the National Cancer Institute, que revela os impactos deletérios das terapias alternativas no tratamento de pacientes de câncer.

O estudo, da Universidade Yale (EUA), mostrou que as terapias sem base científica estão ligadas a taxas mais baixas de sobrevivência. Os cientistas avaliaram 840 pessoas com tumores colorretal, de mama, próstata e pulmão, sendo que 560 receberam tratamento convencional e 280 optaram por terapias alternativas. Após cinco anos, 78,3% dos que usaram tratamento convencional estavam vivos, ante 54,7% dos que optaram por terapia alternativa.

“O estudo mostrou que, em alguns tumores, o risco de morte dobra entre os que abandonam o tratamento convencional. Em outros tipos, como o câncer de mama, o risco chega a ser seis vezes maior. As pessoas estão trocando algo que funciona comprovadamente para 90% dos pacientes por uma terapia que não foi estudada, ou que simplesmente não funciona”, diz Sasse.

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